quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sobre a morte e o morrer - Rubem Alves

 

!!!!!!!11Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heroicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.


Texto publicado no jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do dia 12-10-03. fls 3.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Nascimento E Glória De Saturno

NASCIMENTO E GLORIA DE SATURNO ALPHA

Numa era muito antiga - tão antiga que antes dela só havia o caos - o mundo era governado pelo Céu, filho da Terra. Um dia, este, unindo-se à própria mãe, gerou uma raça de seres prodigiosos, chamados  Titãs. Ocorre que o Céu -  deus poderoso e nem um pouco clemente -  irritou-se, certa feita, com as afrontas que imaginava receber de seus filhos. Por isto, decidiu encerrá-los nas profundezas do ventes da própria esposa, à medida que eles iam nascendo.
          - Aí ficarão para sempre,  no ventre da terra, para que nunca mais ousem desafiar minha autoridade! - exclamou, colericamente, o deus soberano.
         A terra, subjugada, teve de segurar em suas entranhas, durante muitas eras, aquelas turbulentas criaturas e suportar, ao mesmo tempo, o assédio insaciável e ininterrupto do marido. Um dia, porém, farta de tanta tirania, decidiu a mãe do mundo que um de seus filhos deveria libertá-la deste tormento. Para tanto escolheu Saturno, o mais jovem de seus rebanhos.
       - Saturno, meu filho - disse a Terra, lavada em pranto - , somente você poderá libertar-me da tirania de seu pai e conquistar pra si o mando supremo do Universo!
      O Jovem ambicioso Titã sentiu um frêmito percorrer suas entranhas.
      - Diga, minha mãe, o que devo fazer para livrá-la de tamanha dor!- disse Saturno, disposto a tudo para chegar logo à segunda parte do plano.
      A Terra, erguendo  uma enorme foice de diamante, entregou-a ao filho.
      "Tome e use-a da melhor maneira que puder!", disseram seus olhos, onde errava um misto de vergonha de esperança.
      Saturno apanhou a foice e não hesitou um instante: dirigiu-se logo para o local onde seu velho pai descansava. Ao chegar no azulado palácio erguido nos céus, encontrou-o ressonando sobre um grande leito acolchoado de  nuvens.
     - Dorme, o tirano... - sussurrou baixinho.
     Saturno, depois de examinar por algum tempo o rosto do  impiedoso deus, empunhou a foice e pensou consigo mesmo: "Realmente... demasiado soturno."
     E fez descer o terrível gume, logo abaixo da cintura do pobre Céu.
     Um grito terrível, como jamais se ouvira em todo o Universo, ecoou na abóbada celestial, despertando toda a criação.
    - Quem ousou levantar mão ímpia contra o soberano do mundo? gritou o Céu, com as mãos postas sobre a ensanguentada virilha.
    - Isto é pelos tormentos que infligiu à minha mãe, bem como a mim e a meus irmãos - respondeu Saturno, ainda a brandir a foice manchada de sangue.
     Os testículos do Céu, arrancados pelo golpe certeiro da foice, voaram longe e foram cair no oceano, com um baque tremendo. Em seguida, o deus ferido caiu, exangue, sobre o leu leito acolchoado, sem poder dizer mais nada. As nuvens que lhe serviam de leito tingiram-se de um vermelho tal que durante o dia inteiro houve um infinito e escarlate crepúsculo.
     Saturno, eufórico, foi logo contar a proeza à sua mãe.
     - Isto que é filho, disse a Terra, abraçado ao jovem parricida.
     Imediatamente foram soltos todos os outros Titãs, irmãos de Saturno. Este, por sua vez, recebeu sua recompensa: era agora o senhor inconteste de todo o Universo.
     Quando a noite caiu, entretanto, escutou-se uma voz espectral descer da grande cúpula côncava dos céus:
     - Ai de você, rebento infame, que manchou a mão  no sangue do seu próprio pai! Do mesmo modo que usurpou o mando supremo, irá também um dia perdê-lo...
      Saturno assustou-se a princípio, mas em seguida ordenou a seus pares que recomeçassem os festejos.
     -  Ora, ameaçazinhas... Deus morto, deus posto! - exclamou, com um riso talhado no rosto.
     Mas aquela profecia, irritante como um mosquito, ficara ecoando na sua mente, até Saturno, por fim, reconheceu-se também meio soturno:
     - Será que uma vitória, neste mundo, não pode nunca ser completa?

                                                                                                                                                      Fonte: Livro As 100 Melhores Histórias da Mitologia

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Liberdade de expressão

Liberdade de Expressão Guilherme ALPHA Kempoviki (6)Liberdade de  Expressão ALPHA  Salman RushdieLiberdade de  Expressão ALPHA VoltaireLiberdade de Expressão Guilherme ALPHA Kempoviki (1)Liberdade de Expressão Guilherme ALPHA Kempoviki (2)Liberdade de Expressão Guilherme ALPHA Kempoviki (3)Liberdade de Expressão Guilherme ALPHA Kempoviki (4)Liberdade de Expressão Guilherme ALPHA Kempoviki (5)

Que a força esteja com você

Star Wars Bíblia Mestre YODA ALPHA

Carta de Hitchens aos ateus americanos

christopher hitchens (4)

Christopher Hitchens estava agendado para aparecer na convenção de ateus americanos, mas teve de cancelar por causa de sua doença. Então, em vez de comparecer à convenção, mandou esta carta:
Caros companheiros descrentes,
Nada me impediria de me juntar a vocês exceto a perda da minha voz (ao menos a voz falada) que por sua vez é devida à longa discussão que no momento estou tendo com o espectro da morte. Ninguém jamais ganha esse debate, embora haja alguns sólidos argumentos a serem feitos enquanto a arguição continua. Eu descobri, enquanto o inimigo se torna mais familiar, que todo o apelo especial por salvação, redenção e libertação sobrenatural me parece ainda mais oco e artificial do que antes. Espero ajudar a defender e passar adiante as lições disso para muitos anos vindouros, mas por agora encontro minha confiança melhor aplicada em duas coisas: as técnicas e princípios da ciência médica avançada, e a camaradagem de inúmeros amigos e da família, todos eles imunes ao falso consolo da religião. São essas forças entre outras que acelerarão o dia em que a humanidade se emancipará das algemas mentais da subserviência e da superstição. É nossa solidariedade inata, e não algum despotismo celeste, que é a fonte da nossa moralidade e do nosso senso de decência.
Esse sentido essencial de decência está sendo ultrajado todos os dias. O nosso inimigo teocrático está à plena vista. Em múltiplas formas, ele se estende desde a evidente ameaça de mulás armados com artefatos nucleares às insidiosas campanhas para termos absurdas pseudociências ensinadas nas escolas americanas. Mas nos últimos anos, houve sinais animadores de uma genuína e espontânea resistência a essa baboseira sinistra: uma resistência que repudia o direito de valentões e tiranos de fazer a absurda alegação de que deus está do lado deles. Ter tido um pequeno papel nessa resistência foi a maior honra da minha vida: o padrão e propósito de todas as ditaduras é a rendição da razão ao absolutismo e o abandono do questionamento crítico e objetivo. O apelido vulgar para esse delírio letal é religião, e nós temos que aprender novas formas de combatê-la na esfera pública, da mesma forma que aprendemos a nos libertar dela na nossa vida privada.
Nossas armas são a mente irônica contra a literal; a mente aberta contra a crédula; a busca corajosa pela verdade contra as forças amedrontadas e abjetas que querem colocar limites à investigação (e que estupidamente alegam que já temos toda a verdade de que precisamos). Talvez acima de tudo, nós afirmamos a vida acima dos cultos à morte e ao sacrifício humano e temos medo, não da morte inevitável, mas de uma vida que é limitada e distorcida pela necessidade patética de oferecer uma adulação acéfala, ou a triste crença que as leis da natureza respondem a lamúrias e encantamentos.
Como herdeiros de uma revolução secular, os americanos ateus têm uma responsabilidade especial para defender e segurar a Constituição que patrulha as fronteiras entre igreja e Estado. Isso, também, é uma honra e um privilégio. Acreditem em mim quando digo que estou presente junto a vocês, mesmo que não corporeamente (e apenas metaforicamente em espírito…). Determinem-se em reforçar o muro laico do sr. Jefferson. E não mantenham a fé.
Sinceramente,
Christopher Hitchens

Richard Dawkins

richard dawkins
richard dawkins
A evolução é amplamente considerada como uma força progressiva impulsionando inexoravelmente uma melhoria racial que pode ser vista como oferecendo um pouco de esperança tangível para nossa espécie com problemas. Infelizmente este modo de pensar está baseado em dois enganos. Primeiro, não está de forma alguma claro que a evolução é necessariamente progressiva. Segundo, até mesmo quando ela é progressiva, mudança significativa procede em uma escala de tempo muitas ordens de magnitude maiores que a escala de dezenas ou centenas de anos com que os historiadores se sentem confortáveis.
Nós podemos definir progresso evolutivo seja dentro um modo ‘valor-carregado’ ou em um com valor-neutro — ie, com ou sem embutir noções do que é bom ou ruim. Uma definição com valor-carregado especifica se o fator sendo monitorado, seja tamanho do cérebro, inteligência, habilidade artística, força física ou o que for, é desejável ou indesejável. Se um fator desejável aumenta, isso é progresso. Mas em uma definição de valor-neutro, qualquer mudança conta como progresso contanto que continue em seu curso. Tal definição simplesmente toma três entidades em uma seqüência de tempo — pense nelas como uma série de fósseis ancestrais e chame-as de Antes, Durante e Depois [Early, Middle and Late] — e pergunta se a mudança de Antes para Durante está na mesma direção que a mudança de Durante para Depois. Se a resposta for sim, isso é uma mudança progressiva. Esta definição é valor-neutra porque o fator que nós descobrimos ser "progressivo" pode ser algo que nós consideramos como ruim — digamos, ócio ou estupidez. Neste senso de valor-neutro, uma tendência continuada para um tamanho de cérebro diminuído seria progressiva, da mesma maneira que uma tendência para um tamanho de cérebro aumentado seria. A única coisa que não seria progressiva seria uma reversão da tendência.
Já foi moda para biólogos acreditar em algo chamado ortogênese. Esta era a teoria de que tendências em evolução constituem uma força motriz e continuam sob seu próprio impulso. Pensava-se que o alce irlandês tinha sido levado à extinção por seus chifres enormes, que por sua vez pensava-se que tinham crescido maiores sob influência de uma força ortogenética. Talvez inicialmente houvesse um pouco de vantagem em chifres maiores e foi assim que a tendência começou. Mas uma vez iniciada, a tendência tinha sua própria inércia interna e, com o passar das gerações, os chifres continuaram crescendo inexoravelmente até que levaram a espécie à extinção.
Nós pensamos agora que a teoria de ortogênese está errada. Se uma tendência é notada para um tamanho de chifre crescente, isto ocorre porque a seleção natural favorece chifres maiores. Veados individuais com chifres grandes têm mais descendência que veados com chifres de tamanho médio, seja porque eles sobrevivem melhor (improvável) ou atraem fêmeas (provavelmente irrelevante) ou porque eles são melhores em intimidar rivais (provável). Se a tendência parecer persistir por muito tempo no registro fóssil, isto indica que a seleção natural estava impulsionando naquela direção por todo aquele tempo. Metáforas como "força inerente" e "impulso inexorável" não têm nenhuma validez.
Parece se seguir que não há nenhuma razão geral para esperar que evolução seja progressiva — até mesmo no senso fraco, de valor-neutro. Haverá tempos em que o aumento de tamanho de algum órgão é favorecido e outros tempos quando um tamanho menor o é. Na maior parte do tempo, os indivíduos de tamanho médio serão favorecidos na população e ambos extremos serão penalizados. Durante estas épocas a população exibe estase evolutiva (ie, nenhuma mudança) com respeito ao fator sendo medido. Se nós tivéssemos um registro fóssil completo e procurássemos tendências em alguma dimensão particular, como comprimento de pernas, nós esperaríamos ver períodos de nenhuma mudança alternando-se com continuações espasmódicas ou reversões em direção — como uma biruta ao vento em um tempo tempestuoso.
É ainda mais intrigante descobrir que às vezes tendências longas e progressivas em uma direção de fato ocorrem. Quando um órgão é usado para intimidação (como os chifres de um veado) ou para atração (como o rabo do pavão), pode ser que o melhor tamanho a possuir — do ponto de vista de intimidação ou atração — sempre é ligeiramente maior que a média na população. Até mesmo quando a média se torna maior, o ótimo sempre é estar um passo à frente. É possível que tal "seleção com ponto-final em movimento" realmente tenha levado o alce irlandês à extinção: ao levar o "ponto ótimo de intimidação" muito à frente do que teria sido o "ponto utilitário ótimo" global. Pavões e pássaros do paraíso machos também parecem ter sido impulsionados, neste caso através da seleção do gosto feminino, para longe do ponto utilitário ótimo de um vôo eficiente e maquinaria de sobrevivência (entretanto eles não foram levados além do precipício rumo à extinção).
Outra força conduzindo a evolução progressiva é a chamada "corrida braço-a-braço" [arms-race]. Presas evoluem velocidades de corrida mais rápidas do que as de predadores. Por conseguinte predadores têm que evoluir velocidades de corrida ainda mais rápidas, e assim por diante, em uma espiral ascendente. Tal competição provavelmente responde pela engenharia espetacularmente avançada de olhos, orelhas, cérebros, "radares" de morcegos e todos outros armamentos de alta tecnologia que animais exibem. Corridas braço-a-braço são um caso especial de "co-evolução". Co-evolução acontece sempre que o ambiente no qual as criaturas evoluem está em si evoluindo. Do ponto de vista de um antílope, leões fazem parte do ambiente assim como o clima — com a diferença importante de que leões evoluem.
Progresso virtual
Eu quero sugerir um tipo novo de co-evolução que, acredito, pode ter sido responsável por um dos exemplos mais espetaculares de evolução progressiva: o aumento do cérebro humano. Em algum ponto na evolução de cérebros eles adquiriram a habilidade para simular modelos do mundo externo. Em suas formas avançadas nós chamamos esta habilidade de "imaginação". Pode ser comparada ao software de realidade virtual que roda em alguns computadores. Agora aqui está o ponto que eu quero fazer. O "mundo virtual" interno no qual os animais vivem pode em efeito se tornar uma parte do ambiente, de importância comparável ao clima, vegetação, predadores e assim por diante. Nesse caso, uma espiral co-evolutiva pode decolar, com hardware — especialmente hardware cerebral — evoluindo para se ajustar a melhorias no "ambiente virtual" interno. As mudanças em hardware estimulam então melhorias no ambiente virtual, e a espiral continua.
É provável que a espiral progressiva avance até mais rapidamente se o ambiente virtual é reunido como um empreendimento compartilhado que envolve muitos indivíduos. E é provável que alcance velocidades alucinantes se puder se acumular progressivamente com as gerações. A linguagem e outros aspectos da cultura humana fornecem um mecanismo por meio do qual tal acumulação pode acontecer. Pode ser que o hardware cerebral co-evoluiu com os mundos virtuais internos que ele cria. Isto pode ser chamado co-evolução de hardware-software. A linguagem poderia ser tanto um veículo desta co-evolução como seu produto de software mais espetacular. Nós não sabemos quase nada de como a linguagem se originou, uma vez que começou a se fossilizar apenas muit
o recentemente na forma da escrita. O hardware tem sido fossilizado há mais tempo — pelo menos a cobertura óssea exterior do cérebro o tem feito. Seu tamanho continuamente crescente, indicando um aumento correspondente no tamanho do próprio cérebro, é a que eu quero me dirigir a seguir.
É quase certo que o Homo sapiens moderno (que data de apenas aproximadamente 100.000 anos atrás) descende de uma espécie semelhante, o H. erectus, que surgiu primeiro pouco antes de 1.6m de anos atrás. Pensa-se que o H. erectus por sua vez descendeu de alguma forma de Australopithecus. Um possível candidato que viveu aproximadamente 3m anos atrás é o Australopithecus afarensis, representado pela famosa "Lucy". Estas criaturas, que são descritas freqüentemente como macacos que andam eretos, possuíam cérebros quase com o tamanho de um chimpanzé. A Figura 1 na próxima página mostra imagens dos três crânios, em ordem cronológica. Presumivelmente a mudança de Australopithecus para erectus foi gradual. Isto não quer dizer que levou 1.5m anos para se realizar a uma taxa uniforme. Poderia ter acontecido facilmente em paradas e começos. O mesmo se aplica na mudança de erectus para sapiens. Há aproximadamente 300.000 anos atrás, começamos a encontrar fósseis que são chamados "H. sapiens arcaico", pessoas com cérebros-grandes como nós, mas com a parte inferior da testa rústica mais como a do H. erectus.
Parece, de um modo geral, como se houvesse algumas mudanças progressivas ocorrendo através desta série. Nossa cavidade cerebral tem quase o dobro do tamanho da cavidade do erectus; e a cavidade cerebral do erectus, por sua vez, tem quase o dobro do tamanho da cavidade do Australopithecus afarensis. Esta impressão é ilustrada vividamente na próxima imagem, que foi preparada usando um programa chamado Morph*.
Para usar o Morph, você fornece a ele uma imagem de início e uma de fim, e diz quais pontos na imagem de início correspondem a quais números de pontos opostos na imagem final. O Morph computa então uma série de intermediários matemáticos entre as duas imagens. As séries podem ser vistas como um filme de cinema na tela do computador, mas para imprimir isto é necessário extrair uma série de quadros — organizados aqui em ordem em uma espiral (figura 2). A espiral inclui duas sucessões concatenadas: Australopithecus para H. erectus e H. erectus para H. sapiens. Convenientemente os dois intervalos de tempo que separam estes três fósseis de referência são aproximadamente os mesmos, aproximadamente 1.5m anos. Os três crânios de referência rotulados constituem os dados fornecidos ao Morph. Todos os outros são os intermediários computados (ignore o H. futuris no momento).
Gire seu olho pela espiral procurando por tendências. É geralmente verdade que qualquer tendência que você encontre antes do H. erectus continua depois dele. A versão de filme mostra isto muito mais dramaticamente, tanto de forma que é difícil, enquanto você assiste o filme, descobrir alguma descontinuidade enquanto você passa pelo H. erectus. Nós fizemos filmes semelhantes para várias transições evolutivas prováveis na ascendência humana. Freqüentemente, tendências mostram reversões de direção. A continuidade relativamente suave perto do H. erectus é bastante incomum.
Nós podemos dizer que houve uma tendência longa, progressiva — e por padrões evolutivos muito rápida — durante os últimos 3m anos de evolução do crânio humano. Eu estou falando de progresso no sentido de valor-neutro aqui. Como acontece, qualquer pessoa que pense que tamanho de cérebro aumentado tem valor positivo também pode alegar esta tendência como progresso com valor-carregado. Isto é porque a tendência dominante, fluindo tanto antes quanto depois do H. erectus, é o aumento espetacular do cérebro.
E sobre o futuro? Podemos extrapolar a tendência do H. erectus através e além do H. sapiens e assim predizer a forma de crânio do H. futuris 3m de anos à frente? Só um ortogeneticista levaria isto a sério; mas, pelo que vale, nós fizemos uma extrapolação com a ajuda do Morph, e está ao término do diagrama em espiral. Ela mostra uma continuação da tendência para aumento da cavidade cerebral; o queixo continua avançando e fica angular em um pequeno ponto de cavanhaque enquanto a própria mandíbula parece muito pequena para mastigar qualquer coisa além de papinha de bebê. Realmente o crânio inteiro é bastante reminiscente ao crânio de um bebê. Foi sugerido há muito tempo que a evolução humana seja um exemplo de "pedomorfose": a retenção de características juvenis na maioridade. O crânio humano adulto se parece mais com o de um chimpanzé bebê que com o de um chimpanzé adulto.
Não conte com o H. futuris
Há alguma probabilidade de que algo como este hipotético H. futuris de cérebro grande irá evoluir? Eu colocaria muito pouco dinheiro nisto, seja de uma forma ou de outra. Certamente o mero fato de que a inflação de cérebro foi a tendência dominante durante os últimos 3m anos não diz quase nada sobre as tendências prováveis dentro dos próximos 3m. Cérebros continuarão a aumentar apenas se a seleção natural continuar a favorecer indivíduos com cérebros grandes. Isto significa, quando você vai ao cerne disto, se indivíduos com cérebros grandes conseguirem ter em média mais crianças que pessoas com cérebros pequenos.
Não é irracional assumir que cérebros grandes acompanham inteligência, e que a inteligência em nossos antepassados selvagens era associada com habilidade para sobreviver, habilidade para atrair companheiros ou habilidade para superar os rivais. Não é irracional — mas estas duas cláusulas encontrariam seus críticos. É um artigo de fé apaixonado entre os biólogos e antropólogos "politicamente corretos" de que o tamanho do cérebro não tem nenhuma conexão com a inteligência; que a inteligência não tem nada a ver com genes; e que genes são de qualquer maneira coisas fascistas e detestáveis.
Deixando isto de lado, problemas com a idéia permanecem. Nos dias em que a maioria dos indivíduos morria jovem, a qualificação principal para reprodução era sobrevivência até a maioridade. Mas em nossa civilização ocidental poucos morrem jovens, a maioria dos adultos escolhem ter menos crianças que são física e economicamente capazes de possuir, e não está de forma alguma claro que as pessoas com famílias maiores são as mais inteligentes. Qualquer pessoa vendo a evolução humana futura da perspectiva da civilização ocidental avançada dificilmente fará predições confiantes sobre o tamanho do cérebro continuar evoluindo.
Em todo caso, todos estes modos de ver o assunto são extremamente a curto prazo. Fenômenos socialmente importantes como contracepção e educação exercem suas influências sobre a escala de tempo de historiadores humanos, durante décadas e séculos. Tendências evolutivas — pelo menos aquelas que duram o bastante para merecer o título de progressivas — são tão lentas que são totalmente insensíveis aos caprichos de reunião social e tempo histórico. Se nós pudéssemos assumir que algo como nossa civilização científica avançada iria durar 1m, ou até mesmo 100,000 anos, poderia valer a pena pensar nas subcorrentes de pressão da seleção natural nestas condições civilizadas. Mas a probabilidade é que, em 100,000 anos, nós ou teremos revertido ao barbarismo selvagem, ou então a civilização terá avançado além de qualquer reconhecimento — em colônias no espaço exterior, por exemplo. Em qualquer caso é provável que extrapolações evolutivas de condições presentes sejam altamente enganadoras.
Evolucionistas são normalmente bem modestos sobre predizer o futuro. Nossa espécie é uma particularmente difícil de predizer porque a cultura humana, pelo menos durante os últimos milhares anos e acelerando todo o tempo, muda de mod
os que imitam a mudança evolutiva só que de milhares a centenas de milhares de vezes mais rapidamente. Isto é visto claramente quando nós olhamos para o hardware técnico, as ferramentas. É quase um clichê apontar que o veículo com rodas, o aeroplano e o computador eletrônico, para não dizer nada de exemplos mais frívolos como modas de vestir, evoluem de forma notavelmente reminiscente à evolução biológica. Minhas definições formais de progresso com valor-carregado e valor-neutro, embora projetadas para fósseis, podem ser aplicadas sem modificação para tendências culturais e tecnológicas.
Comprimentos de saia e cabelo prevalecentes na sociedade ocidental são progressivos — de forma neutra em relação ao valor, porque são muito triviais para ser qualquer outra coisa — para períodos curtos. Vistos na escala de tempo de décadas, os comprimentos comuns aumentam e diminuem como ioiôs. Armas melhoram (para o que elas são projetadas para fazer, o que pode ser de valor positivo ou negativo dependendo de seu ponto de vista) constante e progressivamente, pelo menos em parte para contrabalançar melhorias no armamento de inimigos. Mas principalmente, como qualquer outra tecnologia, elas melhoram porque invenções novas se somam às anteriores e inventores em qualquer época se beneficiam das idéias, esforços e experiência de seus antecessores. Este princípio é mais espetacularmente manifestado pela evolução do computador digital. O falecido Christopher Evans, psicólogo e autor, calculou que se o motor de carro tivesse evoluído tão rápido quanto o computador e sobre o mesmo período de tempo, "Hoje você poderia comprar um Rolls-Royce por 35 centavos, faria três milhões de milhas por galão e ele forneceria bastante força para dirigir o QE2. E se você estivesse interessado em miniaturização, você poderia colocar meia dúzia deles em uma cabeça de alfinete".
A ciência e a tecnologia que ela inspira podem, é claro, serem usadas para fins negativos. Tendências continuadas em, digamos, aeroplanos ou velocidade de computador são indubitavelmente progressivas em um senso de valor-neutro. Seria fácil de vê-las também como progressivas em vários sentidos de valor-carregado. Mas tal progresso também poderia se mostrar ser carregado com valor profundamente negativo se as tecnologias caírem nas mãos de, digamos, fundamentalistas religiosos inclinados à destruição de seitas rivais que encaram um ponto diferente da bússola para rezar, ou algum hábito igualmente insofrível. Muito pode depender em se as sociedades com a experiência científica e os valores civilizados necessários para desenvolver as tecnologias mantenham controle delas; ou se elas permitirem que se espalhem a sociedades educacional e cientificamente atrasadas que simplesmente têm o dinheiro para comprá-las.
Os progressos científico e tecnológico são de valor-neutro. Eles são simplesmente muito bons em fazer o que fazem. Se você quiser fazer coisas egoístas, gananciosas, intolerantes e violentas, a tecnologia científica lhe proporcionará sem dúvida o modo mais eficiente de fazê-las. Mas se você quiser fazer bem, resolver os problemas do mundo, progredir no melhor senso de valor-carregado, uma vez mais, não há nenhum meio melhor a esses fins que o modo científico. Para o bem ou mal, espero que o conhecimento científico e a invenção técnica se desenvolva progressivamente durante os próximos 150 anos, e a uma taxa acelerada